CARTA PARA AS FAMILIAS D PAPA JOÃO PAULO II
A família: via da Igreja
2. Dentre essas numerosas estradas, a primeira e a mais importante é a família: uma via comum, mesmo se permanece particular, única e irrepetível, como irrepetível é cada homem; uma via da qual o ser humano não pode separar-se. Com efeito, normalmente ele vem ao mundo no seio de uma família, podendo-se dizer que a ela deve o próprio facto de existir como homem. Quando falta a família logo à chegada da pessoa ao mundo, acaba por criar-se uma inquietante e dolorosa carência que pesará depois sobre toda a vida. A Igreja une-se com afectuosa solicitude a quantos vivem tais situações, porque está bem ciente do papel fundamental que a família é chamada a desempenhar. Ela sabe, ainda, que normalmente o homem sai da família para realizar, por sua vez num novo núcleo familiar, a própria vocação de vida. Mesmo quando opta por ficar sozinho, a família permanece, por assim dizer, o seu horizonte existencial, como aquela comunidade fundamental onde se radica toda a rede das suas relações sociais, desde as mais imediatas e próximas até às mais distantes. Porventura não usamos a expressão «família humana», para nos referirmos ao conjunto dos homens que vivem no mundo?
A família tem a sua origem naquele mesmo amor com que o Criador abraça o mundo criado, como se afirma já «ao princípio», no livro do Génesis (1, 1). Uma suprema confirmação disso mesmo, no-la oferece Jesus no Evangelho: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16). O Filho unigénito, consubstancial ao Pai, «Deus de Deus, Luz da Luz», entrou na história dos homens através da família: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, (...) amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (3). Se é certo que Cristo «revela plenamente o homem a si mesmo» (4), fá-lo a começar da família onde Ele escolheu nascer e crescer. Sabe-se que o Redentor passou grande parte da sua vida no recanto escondido de Nazaré, «submisso» (Lc 2, 51) como «filho do homem» a Maria, sua Mãe, e a José, o carpinteiro. Esta sua «obediência» filial não é já a primeira manifestação daquela obediência ao Pai «até à morte» (Fil 2, 8), por meio da qual redimiu o mundo?
O mistério divino da Encarnação do Verbo está, pois, em estreita relação com a família humana. Não apenas com uma — a de Nazaré —, mas de certo forma com cada família, analogamente a quanto afirma o Concílio Vaticano II do Filho de Deus que, na encarnação, «Se uniu de certo modo com cada homem» (5). Seguindo a Cristo que «veio» ao mundo «para servir» (Mt 20, 28), a Igreja considera o serviço à família uma das suas obrigações essenciais. Neste sentido, tanto o homem como a família constituem «a via da Igreja».
O Ano da Família
3. Por isso mesmo, a Igreja saúda com alegria a iniciativa promovida pela Organização das Nações Unidas, de fazer de 1994 o Ano Internacional da Família. Tal iniciativa põe em realce o quanto seja fundamental a questão familiar para os Estados que são membros da ONU. Se a Igreja deseja tomar parte nela, fá-lo porque ela mesma foi enviada por Cristo a «todas as nações» (Mt 28, 19). Não é a primeira vez, aliás, que a Igreja assume como própria uma iniciativa internacional da ONU. Basta recordar, por exemplo, o Ano Internacional da Juventude em 1985. Também deste modo ela se faz presente no mundo, realizando a intenção grata ao Papa João XXIII e inspiradora da Constituição conciliar Gaudium et spes.
Na festa da Sagrada Família de 1993, teve início em toda a Comunidade eclesial o «Ano da Família», como uma das etapas significativas no itinerário de preparação para o Grande Jubileu do ano 2000, que assinalará o fim do segundo e o início do terceiro Milénio do nascimento de Jesus Cristo. Este Ano deve orientar os nossos pensamentos e os nossos corações para Nazaré, onde, no passado dia 26 de Dezembro, aquele foi oficialmente inaugurado com a solene Celebração Eucarística presidida pelo Legado Pontifício.
Ao longo deste Ano, é importante redescobrir os testemunhos do amor e da solicitude da Igreja pela família: amor e solicitude expressos desde os primórdios do cristianismo, quando a família era significativamente considerada como «igreja doméstica». Nos nossos tempos, voltamos frequentemente a esta expressão «igreja doméstica», que o Concílio assumiu (6) e cujo conteúdo desejamos permaneça sempre vivo e actual. Este desejo não esmorece com a consciência das novas condições das famílias no mundo de hoje. Por isso mesmo, é mais significativo que nunca o título escolhido pelo Concílio, na Constituição pastoral Gaudium et spes, para indicar as tarefas da Igreja na situação actual: «A promoção da dignidade do matrimónio e da família» (7). Depois do Concílio, um outro ponto importante de referência é a Exortação apostólica Familiaris consortio do ano 1981. Neste texto, encara-se uma vasta e complexa experiência relativa à família, que, no meio de povos e países diversos, permanece sempre e em todo o lado «a via da Igreja». De certo modo, torna-se-lo ainda mais precisamente lá onde a família sofre crises internas, ou está sujeita a influências culturais, sociais e económicas nocivas, que lhe minam a estabilidade interna, quando não obstaculizam mesmo a sua própria formação.
A oração
4. Com a presente Carta, quereria dirigir-me não à família «em abstracto», mas a cada família concreta de cada região da terra, qualquer que seja a longitude e latitude geográfica, onde se encontre, ou a diversidade e complexidade da sua cultura e da sua história. O amor com que Deus «amou o mundo» (Jo 3, 16), o amor com que Cristo «amou até ao fim» a todos e cada um (Jo 13, 1), torna possível dirigir esta mensagem a toda a família, «célula» vital da grande e universal «família» humana. O Pai, Criador do universo, e o Verbo encarnado, Redentor da humanidade, constituem a fonte desta abertura universal aos homens como a irmãos e irmãs, e impele a abraçá-los todos com a oração que começa pelas ternas palavras: «Pai nosso».
A oração faz com que o Filho de Deus habite no meio de nós: «Onde estiverem reunidos, em meu Nome, dois ou três, Eu estou no meio deles» (Mt 18, 20). Esta Carta às Famílias quer ser sobretudo uma súplica dirigida a Cristo, para que permaneça em cada família humana; uma súplica feita a Ele, através da família restrita dos pais e filhos, para que habite na grande família das nações, a fim de que todos, juntos com Ele, possamos dizer com verdade: «Pai nosso»! É preciso que a oração se torne o elemento predominante do Ano da Família na Igreja: oração da família, oração pela família, oração com a família.
Significativo é que, precisamente na oração e pela oração, o homem descubra, de modo tão simples e ao mesmo tempo profundo, a sua típica subjectividade: na oração, o «eu» humano percebe mais facilmente a profundidade do seu ser pessoa. Isto vale também para a família, que não é apenas a «célula» fundamental da sociedade, mas possui mesmo uma própria e peculiar subjectividade. Esta obtém a sua primeira e fundamental confirmação, e consolida-se, quando os membros da família se encontram na invocação comum: «Pai nosso». A oração reforça a estabilidade e a solidez espiritual da família, ajudando a fazer com que esta participe da «fortaleza» de Deus. Na solene «bênção nupcial» durante o rito do matrimónio, o celebrante invoca deste modo o Senhor: «Efunde sobre eles (os recém-casados) a graça do Espírito Santo, a fim de que, em virtude do teu amor derramado nos seus corações, perseverem fiéis na aliança conjugal» (8). É desta «efusão do Espírito Santo» que dimana a força interior das famílias, bem como o poder susceptível de as unificar no amor e na verdade.
O amor e a solicitude por todas as famílias
5. Que o Ano da Família se torne uma comum e incessante oração de cada uma das «igrejas domésticas» e de todo o Povo de Deus! Desta oração, beneficiem também as famílias em dificuldade ou em perigo, as famílias desanimadas ou divididas, e aquelas que se encontram nas situações que a Familiaris consortio qualifica como «irregulares» (9). Possam sentir-se todas abraçadas pelo amor e pela solicitude dos irmãos e das irmãs!
A oração, no Ano da Família, constitua sobretudo um testemunho encorajador por parte das famílias que realizam na comunhão doméstica a sua vocação de vida humana e cristã. E são tantas em cada nação, diocese e paróquia! Pode-se razoavelmente pensar que elas constituem «a regra», mesmo tendo presente as não poucas «situações irregulares». E a experiência demonstra como o papel de uma família coerente com a norma moral é importante para o homem, que nela nasce e se forma, ingressar sem hesitações pela estrada do bem, inscrito sempre no seu coração. Nos nossos dias, infelizmente, vários programas sustentados por meios muito poderosos parecem apostados na desagregação das famílias. Às vezes, até parece que se procure, por todas as formas possíveis, apresentar como «regulares» e atraentes, conferindo-lhes externas aparências de fascínio, situações que, de facto, são «irregulares». Estas, efectivamente, contradizem a «verdade e o amor» que devem inspirar e guiar a recíproca relação entre homens e mulheres, sendo assim causa de tensões e divisões nas famílias, com graves consequências especialmente sobre os filhos. Fica obscurecida a consciência moral, aparece deformado o que é verdadeiro, bom e belo, e a liberdade acaba suplantada por uma verdadeira e própria escravidão . Perante tudo isto, como ressoam actuais e incentivadoras as palavras do apóstolo Paulo acerca da liberdade com que Cristo nos libertou, e da escravidão causada pelo pecado (cf. Gál 5, 1)!
Damo-nos, assim, conta de quanto seja oportuno e até necessário na Igreja um Ano da Família; quão indispensável seja o testemunho de todas as famílias que vivem dia-a-dia a sua vocação; quanta urgência exista de uma grande oração das famílias, que aumente e atravesse o mundo inteiro, e na qual se exprima a acção de graças pelo amor na verdade, pela «efusão da graça do Espírito Santo» (10), pela presença de Cristo entre os pais e os filhos: Cristo Redentor e Esposo, que «nos amou até ao fim» (cf. Jo 13, 1). Estamos intimamente persuadidos de que este amor é maior que tudo (cf. 1 Cor 13, 13), e cremos que ele é capaz de superar vitoriosamente tudo o que não é amor.
Neste ano, eleve-se incessante a oração da Igreja, a oração das famílias, «igrejas domésticas»! E faça-se ouvir primeiro a Deus e depois também aos homens, para que estes não caiam na dúvida, e quantos vacilam por causa da fragilidade humana não cedam à sedução tentadora de bens só aparentes, como são aqueles propostos em toda a tentação.
Em Caná da Galileia, onde Jesus foi convidado para um banquete de núpcias, a sua Mãe, também Ela presente, dirigiu-se aos serventes, dizendo: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5). Também a nós, entrados no Ano da Família, Maria nos dirige as mesmas palavras. E aquilo que Cristo nos diz neste momento histórico particular, constitui um forte apelo a uma grande oração com as famílias e pelas famílias. Por esta oração, a Virgem Mãe convida a unirmo-nos aos sentimentos do Filho, que ama cada uma das famílias. Este amor foi por Ele expresso ao início da sua missão de Redentor, precisamente com a sua presença santificadora em Caná da Galileia, presença que ainda agora continua.
Rezemos pelas famílias de todo o mundo. Por Ele, com Ele e n'Ele, rezemos ao Pai, «do Qual toda a paternidade, nos Céus como na Terra, toma o nome» (Ef 3, 15).
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